A culpada

Minha foto
Nenhuma literatura está livre de ficção. E nem de verdade.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Pessoal

Eis que acordo com batidas na porta às 13h de sábado.
"Deve ser sonho". Voltei a fechar os olhos e virei o rosto contra o travesseiro.
As batidas começaram a ficar mais fortes.
A campainha começa a tocar incansavelmente.
"Quem pode ser uma hora dessas?"

Era uma criança.

- Oi, o que você quer?
- Falar com você.
- Você está vendendo algo?
- Não.
- Está perdida?
- Mais ou menos.
- Ora... Quer entrar pra ligar pra sua mãe? Ou pro seu pai, não sei... Você tem o telefone de alguém? Tem pra quem voltar?
- Quero entrar, sim.

Aquela pequena criatura do cabelo negro, liso e pesado e dos lindos olhos puxados falava com tranquilidade, falava firme, que nem gente grande. Entrou e foi logo escolhendo lugar pra sentar: O tapete perto da TV.

- Não quer se sentar no sofá?
- Aqui tá bom.
...
- Então, você tem o telefone de alguém pra eu poder te ajudar?
- Não.
- Então como vou te ajudar?
- Não sei - e deu de ombros.
- Mas aonde você mora?
- Aqui pertinho.
- Sabe chegar lá?
- Aham.
- Então por que não vai pra casa, criatura? Achei que estivesse perdida!
A pequena virou o rosto e fixou o olhar numa antiga fotografia de família.
- Quem são?
- Meu pais... Mas me responda! Por que não volta pra casa?
- É mais perto do que você imagina, sabia?
- Como assim?
- Assim.
- Ora, quem é você?!
- Você.
- Não estou brincando! Quem é você?
- Você.
- Tudo bem. Vou lavar o rosto, vestir uma roupa e você me mostra onde é sua casa, tudo bem? - já irritada.
- Tudo bem. Já chegamos.
- Ah, você mora aqui? Essa é novidade pra mim...
- Sei que sim. Mas por que você nunca mais viu seus pais?
- Mas eu vejo meus pais!
- Sério? Quando foi a ultima vez?
- Tem pouco tempo. Um ano, um ano e meio, sei lá.
- Ah, eles moram longe? Aonde?
- Na verdade, não. Moram aqui na cidade mesmo.
- Então um ano e meio é muito tempo. Por que não os visita mais?
- Ah, não sei... Sinto a falta deles, mas não quero me reaproximar do meu pai. Tenho um certo medo de ser como ele, entende?
- Ele é ruim?
- Não exatamente.
- Então ele é como você!
- Não, claro que não... Deus me livre! Mas olhe só, eu discutindo minha vida com uma criança que nem ao menos me diz quem é... Vamos parar com o papo furado. Deixe eu me arrumar pra te levar pra casa!
- É, você não tem tanto do seu pai... Mas acho que você conhece alguém que tem. Lembra do Fernando?
- Fernando? Como você sabe do Fernando? - Sentei-me assustada  no sofá perto da menina.
- Sabendo. Mas ele não é como seu pai?
- É... - Enquanto isso, só conseguia pensar "como ela sabe tanto? Como ela é tão desenvolta pra falar assim de minha vida?"
- E dele, você sente saudades?
- Não! Não mesmo!
- Nem um pouco?
- Nem um pouco! Vem cá, você é sobrinha dele ou algo assim? Quem te mandou aqui, hein?!
- Nossa, por que essa raiva ao falar dele? Você não era assim... Nunca te vi com raiva de ninguém... Raiva ou mágoa?
- Ué, você sabe o que houve entre nós? Acho que não... Pois se soubesse, me daria razão para sentir qualquer coisa ruim por esse ser desprezível!
- Mas que bela palavra: Desprezível!
- Como você é estranha, menina...
- Ora, somos, não acha?
- Somos? Não, você é! Olha só as coisas que você fala, não fazem nunca sentido completo.
- Também não faz sentido você sentir algo que não seja desprezo por alguém que define como desprezível.
- E pena, eu posso sentir, Sra. Sabe Tudo?
- Aí eu te encheria de razão! A não ser que...
- O que?
- Nada...
- Agora fala!
- Olha só, você não acha melhor se arrumar?
- É, talvez seja melhor. - Botei apenas um short decente, lavei o rosto escovei os dentes e fomos.

- É aqui.
- É aqui que você mora? Na casa do Fernando? Sabia que vocês se conheciam! Meu Deus, ele não cansa de ser patético.
- Bem, vamos entrar.
- Não. Está entregue.
- Por favor, entre comigo. Juro que não vai ser ruim. - A pequena deu-me a mão e me olhou com ternura.

Fui.

Entramos.
A porta rangeu.
Casa completamente vazia: Piso intacto, paredes completamente escuras de tão sujas. Não tinha móveis e nem nenhum tipo de decoração. Parecia mesmo uma casa abandonada.

- Está vazia. Cadê o Fernando? Se mudou?
- Não. Está aqui.
- Aonde?
- Aqui. Estamos no Fernando. Experimente falar algo alto.
- Oi! - O som ecoou.
- É realmente vazio, viu?
- Vi... Mas não entendo.
- Ta vendo as paredes sujas? São as marcas da loucura. Se debatendo de um lado pro outro, como numa solitária de hospício.
- Nada mais justo. - Soltei um riso irônico sem querer - Mas e o chão, por que está tão limpo e intacto?
- Tire os sapatos.
- Nossa, que gelo!
- Pois é... O chão está limpo pois era revestido por um lindo carpete para que ninguém percebesse o frio que se fazia em seu interior. E enganava muito bem, não é?

Com uma lágrima escorrendo pela maçã do rosto, falei quase que sussurrando de tão fraca que me senti:
- E como...
- Só queria te mostrar isso. Agora vamos antes que isso ele consiga tirar tudo o que lhe resta de forças.
- Vamos...

Chegando em casa, ainda trêmula e chocada com a experiência que tinha acabado de ter, ofereci um lanche à pequena que tanto que abriu os olhos.
- Não, deixa que eu faço. Quer chocolate quente, né?
- Como sabe? Você sabe tudo?! - disse em tom de brincadeira.
- Já disse, eu sou você!

E não é que era?
Mas é claro que era!
Por mais louco que isso fosse, aquela menina era eu!
Por incrível que pareça, não chorei com tal constatação, apenas sorri e a deixei livre pela casa, com seu jeito autoritário e meigo e suas opiniões mais maduras e sensatas que as minhas - por mais complexo que isso seja.

- Você entendeu o que eu quis que entendesse?
- Sobre o que?
- Fernando.... Você...
- Acho que sim...
- Sabe, ele é uma pessoa vazia. Precisa de um disfarce para que as pessoas o queiram visitar ou invadir, mas quem invade não fica por muito tempo, por isso não há nenhuma decoração. Pessoas vazias não acrescentam. Não deixe que ele te diminua.
- O que quer dizer?
- Não sinta raiva. Não sinta mágoa. Desprezo é mais digno.
- Sim...
- Não olha pro chão, não fica assim. Você sempre soube disso! Agora se anima e vamos ligar pros seus pais, tá bem?

Fechou a porta na primeira chamada do telefone.
Antes que eu pudesse dizer adeus, alguém dizia "alô" do outro lado da linha.

- Oi, alô... Mãe?